Mulheres são 33% dos casos de tráfico privilegiado no Brasil; prisões em Guarulhos quadruplicam em 2025

Mulheres são 33% dos casos de tráfico privilegiado no Brasil; prisões em Guarulhos quadruplicam em 2025
RENATO DA ANTONIO 0 Comentários novembro 5, 2025

Em um cenário que expõe a desigualdade estrutural do sistema penal brasileiro, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou, em 6 de maio de 2025, que mulheres respondem por 33% dos casos de tráfico privilegiado no país — um número que supera em oito pontos percentuais o índice entre homens (25%). O dado, extraído de um levantamento sem precedentes baseado em mais de 1,5 milhão de processos penais, aponta para uma realidade perturbadora: milhares de pessoas, majoritariamente mulheres pobres e sem histórico criminal, estão atrás das grades por atos que a lei considera "menos graves" — mas que ainda assim resultam em penas de até 15 anos. E o pior? Muitas delas nem sequer sabem o que estão transportando. No Aeroporto Internacional de São Paulo (Guarulhos), as prisões de "mulas" saltaram mais de 300% em 2025, passando de 142 para 589 detenções em apenas um ano. O que antes era um fenômeno isolado virou uma epidemia silenciosa.

As mulheres que carregam o peso do tráfico

A maioria dessas mulheres não é parte de organizações criminosas. São mães solteiras, estudantes, imigrantes em situação vulnerável, muitas delas estrangeiras. Segundo a Penitenciária Feminina Santana, em São Paulo, 122 mulheres estrangeiras estão detidas por tráfico de drogas — entre elas, uma sul-africana de 38 anos presa em novembro de 2024 com 800 gramas de cocaína escondidas no colchão de sua mala. "Pergunto se ela se arrepende do que fez", disse a repórter Cristiane Azanha, ao ouvir a resposta da mulher: "Todos os dias é a mesma resposta: não tinha escolha." Essas mulheres são recrutadas por pequenos valores — entre R$ 1.500 e R$ 5.000 — para transportar drogas entre países. Ninguém as treina. Ninguém as protege. E quando são pegas, o sistema as trata como criminosas, não como vítimas.

Tráfico privilegiado: uma saída lógica, mas mal aplicada

O CNJ estima que 110 mil pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil poderiam ter suas penas revisadas para tráfico privilegiado — modalidade legal que prevê penas mais leves para quem não tem antecedentes nem vínculo com facções. Entre 2014 e 2023, os casos de tráfico privilegiado aumentaram 294%, enquanto o tráfico comum subiu apenas 139,6%. Isso mostra que o sistema está cada vez mais reconhecendo que muitos presos não são "capitães do tráfico", mas pessoas usadas como instrumentos. Mesmo assim, 5,5% desses condenados ainda cumprem pena em regime fechado, mesmo sem violência, sem armas e sem envolvimento com organizações criminosas. "É como prender alguém por dirigir sem habilitação e colocar na cela de um assassino", diz um juiz de execução penal que pediu anonimato. O CNJ recomenda revisão de penas restritivas de direitos em 47% dos casos — o que equivale a 3.343 possíveis liberações ou reduções de pena. Mas até agora, menos de 15% dessas revisões foram efetivadas.

Superlotação e o custo humano da inércia

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo — mais de 800 mil pessoas presas. E 40% delas estão detidas por tráfico, muitas sem condenação definitiva. A superlotação não é só um problema de infraestrutura: é um problema moral. As celas ficam com até três vezes mais presos do que o limite legal. A higiene é precária. A violência, endêmica. O CNJ já apontou que a aplicação correta do tráfico privilegiado poderia reduzir a população carcerária em até 12% — o equivalente a 96 mil vagas livres. Mas a burocracia, a falta de capacitação de juízes e a cultura punitiva do sistema impedem mudanças reais. "A Justiça brasileira ainda pensa em punir, não em resolver", afirma a doutora em direito penal Maria Helena de Oliveira, da USP. "O tráfico privilegiado é um instrumento jurídico brilhante. Só que ninguém quer usá-lo de verdade."

As drogas entram, mesmo com scanners

As drogas entram, mesmo com scanners

Enquanto o sistema penal falha, o tráfico adapta-se. Em 2025, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo registrou 52 casos de tráfico de drogas dentro de presídios — um aumento de 92,56% em relação a 2024. Maconha, cocaína e a K4 (maconha sintética) são escondidas em roupas, alimentos, brinquedos e até em corpos. Em Maranhão, entre janeiro e setembro de 2025, foram apreendidas 4 toneladas de drogas — 2,8 toneladas de maconha e 1,2 de cocaína — com prejuízo de R$ 215 milhões ao crime organizado. Mas a apreensão não é o fim da história. "A polícia prende a mula, mas o chefe continua operando", diz o delegado da Polícia Civil do Maranhão, em entrevista à Rádio Opinião em 30 de outubro de 2025. "A rede é tão invisível quanto a droga que ela esconde."

Por que isso importa para você?

Porque o sistema penal não está apenas falhando com as mulheres presas. Ele falha com toda a sociedade. A cada prisão injusta, o Estado gasta R$ 3.200 por mês. A cada mês que uma mãe fica presa, seus filhos entram no sistema de acolhimento. A cada condenação sem revisão, a desigualdade se consolida. E enquanto a política de drogas se mantém punitiva, o mercado de entorpecentes cresce, os presídios explodem e as mulheres continuam sendo usadas como moeda de troca. A solução não está em mais prisões. Está em reconhecer que nem todo traficante é um bandido. Às vezes, é só uma mulher com fome.

Frequently Asked Questions

O que é exatamente o tráfico privilegiado?

É uma figura legal prevista no artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que reduz a pena para quem comete tráfico sem antecedentes criminais e sem vínculo com organizações criminosas. A pena pode variar de 1 a 5 anos, em regime aberto ou semiaberto, e pode ser substituída por restrição de direitos. O problema é que muitos juízes ainda não aplicam corretamente — e acabam mandando essas pessoas para prisões fechadas, como se fossem criminosos de alto risco.

Por que tantas mulheres são usadas como "mulas"?

Porque são menos suspeitas. Aos olhos da polícia e da sociedade, mulheres — especialmente estrangeiras, mães ou idosas — não parecem "perigosas". Traficantes exploram esse estereótipo: elas passam por segurança sem serem revistadas com a mesma intensidade. Além disso, muitas vivem em situação de extrema pobreza, sem acesso a emprego ou educação. Um valor de R$ 3.000 pode parecer uma fortuna para quem vive com R$ 800 por mês. A escolha não é livre: é sobrevivência.

Por que o CNJ não conseguiu incluir São Paulo nos dados?

O Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) ainda não está totalmente integrado em São Paulo. O estado tem um volume imenso de processos e um sistema próprio de gestão penal, mais antigo e menos digitalizado. Isso significa que os dados de São Paulo — onde ocorrem quase 30% das prisões por tráfico no país — não foram contabilizados no levantamento. O que implica: o número real de mulheres em tráfico privilegiado pode ser ainda maior do que o mostrado.

O que está sendo feito para mudar essa realidade?

Alguns juizados especiais, como os de São Paulo e Rio Grande do Sul, já começaram a revisar casos de tráfico privilegiado com mais rigor. Em 2024, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a libertação de 87 mulheres presas por tráfico sem antecedentes. Mas ainda não há política nacional. O CNJ recomendou 3.343 revisões, mas apenas 480 foram efetivadas até abril de 2025. A pressão vem de ONGs, como o Instituto Sou da Paz, e de movimentos feministas, mas o poder legislativo ainda não agiu.

Essa situação é única no Brasil?

Não. Na Colômbia, México e Filipinas, mulheres também respondem por mais de 30% das prisões por tráfico, geralmente como "mulas". Mas em países como Portugal e Holanda, que adotam políticas de despenalização e foco em saúde pública, essas prisões caíram em até 60% nos últimos dez anos. O Brasil ainda insiste em tratar o tráfico como crime, e não como problema social. A diferença está na visão: punição ou proteção?

Como posso ajudar?

Você pode apoiar organizações que atuam na defesa de mulheres presas, como o Grupo de Trabalho sobre Mulheres e Justiça Penal ou o Projeto Vozes. Também pode cobrar seus representantes políticos para aprovarem leis que garantam revisão automática de penas em casos de tráfico privilegiado. E, principalmente, deixar de ver essas mulheres como criminosas — e começar a ver como vítimas de um sistema que as usou e depois as abandonou.