Em dois dias, um freio na Justiça e um avanço na anistia
Em 48 horas, a Câmara dos Deputados mudou o eixo da crise política. Na terça-feira, 16 de setembro de 2025, aprovou a PEC da Blindagem (PEC 3/2021), que cria barreiras para investigar parlamentares. No dia seguinte, deu urgência a um projeto de anistia para envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023, que tentaram um golpe e invadiram as sedes dos Três Poderes.
No meio do fogo cruzado, um articulador do PT defende que o apoio à PEC foi um “gesto tático”: colocar um anteparo legislativo para esvaziar a anistia ampla patrocinada pelo PL e aliados. A leitura é simples e polêmica: melhor sofrer desgaste agora, com uma blindagem limitada, do que abrir a porta para um perdão geral que poderia alcançar desde militantes até líderes políticos, possivelmente o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O cálculo, porém, encontra resistência dentro e fora do Congresso. Críticos veem as duas pautas como faces do mesmo problema: aumento da impunidade. Organizações anticorrupção, como a Transparência Internacional Brasil, alertam que a PEC recria um cenário já testado e reprovado: entre 1988 e 2001, quando era preciso autorização do Legislativo para processar parlamentares, 253 pedidos foram enterrados e apenas um seguiu adiante.
O pano de fundo é a escalada de investigações sobre desvios de recursos públicos, inclusive emendas parlamentares. Aliados admitem nos bastidores que a pressa da blindagem tem relação com quase uma centena de casos que avançam nos tribunais e podem alcançar gabinetes influentes.
- Terça (16/9): Câmara aprova a PEC 3/2021, que exige aval do Congresso para investigações e medidas judiciais contra deputados e senadores e fixa prazo de 90 dias para a Casa se manifestar.
- Quarta (17/9): Câmara aprova urgência da anistia para investigados e condenados pelos atos de 8 de janeiro; projeto pode ir direto ao plenário.
- Domingo (21/9): PSOL puxa atos em São Paulo e no Rio; artistas como Caetano Veloso e Sandra de Sá aderem.

O que muda com a PEC e o que vem pela frente
A PEC 3/2021 aumenta o controle político sobre o início e o andamento de investigações contra parlamentares federais. Na prática, Ministério Público e Judiciário passam a depender de aval do Legislativo para abrir procedimentos, realizar medidas como quebras de sigilo e dar seguimento a ações penais. O texto também cria um prazo de 90 dias para que a Casa analise os pedidos. Se o prazo expira sem decisão, não há regra que permita tocar o processo adiante por inércia — um convite ao travamento silencioso.
Esse desenho remete ao período anterior à Emenda Constitucional de 2001, quando o Congresso barrava processos com frequência. A Transparência Internacional lembra o placar daquele tempo: centenas de pedidos arquivados, praticamente nenhum autorizado. Para a entidade, é a “certeza da impunidade” de volta ao texto constitucional.
A crítica ganha peso por causa do ambiente orçamentário. Deputados e senadores controlam hoje mais de R$ 50 bilhões por ano em emendas. Ao mesmo tempo, resistem a mecanismos de transparência e fiscalização, tema que já rendeu escândalos recentes. Com a blindagem, a mensagem para procuradores e juízes é desanimadora: primeiro, convença os próprios investigados.
- Prévia do Legislativo: pedidos de investigação e medidas cautelares contra parlamentares dependeriam de autorização das Casas.
- Prazo de 90 dias: sem decisão nesse período, o processo não avança por conta própria.
- Risco de paralisia: lideranças podem segurar a pauta e impor custo político a quem tentar votar contra colegas.
- Trâmite duro: por ser emenda constitucional, a PEC ainda precisa passar pelo Senado, em dois turnos, com 3/5 dos votos.
Do outro lado da mesa está a anistia do 8 de janeiro. A urgência aprovada permite levar o texto direto ao plenário, sem passar por comissões. Republicanos, União Brasil e PP deram lastro ao pedido. A articulação tem um objetivo claro: pacificar a base mais radical e, se possível, zerar a conta penal do episódio que chocou o país e colocou o Supremo e o Congresso sob ataque direto.
O governo trabalha para derrotar a anistia ampla. No Senado, o presidente Davi Alcolumbre sinalizou que não pretende pautar um perdão geral. Como alternativa, circula a ideia de reduzir penas já aplicadas, sem apagar as condenações — um meio-termo para aliviar tensões sem rasgar o recado institucional de que golpe não passa.
No campo político, o PT tenta sustentar a narrativa de que a blindagem, por paradoxal que pareça, ajuda a fechar a porta da anistia ampla. A lógica é que, com um filtro prévio no Congresso, o apetite por um perdão total diminuiria, sobretudo no Senado. O problema: o argumento esbarra na percepção pública de autoproteção corporativa. Para a opinião pública, duas decisões em dois dias soam como um pacto dos políticos para cuidar de si mesmos.
A pressão das ruas volta ao jogo. Deputados federais do PSOL — Guilherme Boulos, Erika Hilton e Tarcísio Motta — marcaram protestos para domingo em São Paulo e no Rio. A adesão de nomes populares, como Caetano Veloso e Sandra de Sá, amplia o alcance do ato e aumenta o custo de aprovar qualquer texto que cheire a perdão coletivo.
Em termos de calendário, há três movimentos a observar. Primeiro, a tramitação da PEC no Senado, onde a margem é mais estreita e governistas acreditam ter espaço para mudar o texto ou deixá-lo esfriar. Segundo, a votação da anistia na Câmara, que pode ocorrer a qualquer momento graças à urgência. Terceiro, a reação do Supremo, que acompanha de perto iniciativas que afetem investigações em curso sobre 8 de janeiro e sobre desvios de recursos públicos.
O placar é apertado nos dois lados. Na Câmara, líderes favoráveis à anistia dizem ter votos suficientes. No governo, a contabilidade é outra: falta coesão entre legendas do centrão e há receio de desgaste em ano pré-eleitoral. No Senado, a resistência à anistia é maior, mas a blindagem ainda seduz quem teme virar alvo de operações.
Quem defende a PEC argumenta que a Constituição protege a independência do mandato e que abusos de autoridade precisam de freios. Quem critica pergunta: quem vai frear os abusos se o filtro está nas mãos dos próprios interessados? É essa fratura que atravessa Brasília neste momento — com um olho na Justiça e outro no termômetro das ruas.
Enquanto isso, investigações sobre 8 de janeiro avançam. Condenados já cumprem pena, e novos denunciados seguem para julgamento. Para eles, a urgência da anistia é uma janela rara. Para o sistema político, é um teste de limites: até onde vai a disposição de reescrever as consequências de um ataque à democracia?
Seja qual for o desfecho, a combinação de blindagem e anistia mexe no coração do pacto entre poderes. A Câmara apertou o passo. O Senado virou a peça-chave. E o Planalto tenta redesenhar a rota no intervalo — de preferência antes que a conta chegue nas pesquisas e nas urnas.